Breve análise dos seus requisitos, vantagens e pontos polêmicos

Como de trivial sabença nosso Poder Judiciário é moroso, caro e passível de interpretações diversas, o que gera insegurança jurídica. Conforme apontou o relatório "Justiça em números", divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no final de 2020 tínhamos 62,4 milhões de processos[1]. Essa situação afeta não apenas os jurisdicionados, mas também investidores internacionais que veem um país que não se mostra eficiente para decidir questões postas a juízo. Na mesma proporção, não nos mostrávamos aptos a proteger dados pessoais e por interferência internacional a Lei Geral de Proteção de Dados entrou em vigor. Assim, seja pelo clamor nacional, internacional ou de ambos, o legislador viu-se obrigado a repensar todo o sistema.
E o que fazer para melhorar o Poder Judiciário, dar acesso à justiça e efetividade das decisões judiciais ao jurisdicionado? Desjudicializar!
A ideia da desjudicialização iniciou com a ampla reformulação do Poder Judiciário preconizada pela Emenda Constitucional nº 45, em 2004 e em rápidos exemplos, posso citar o surgimento dos tribunais de arbitragem, conciliação e mediação (Leis 10.259/2001 e 12.153/2009), a possibilidade da realização de separações, divórcios e inventários junto aos cartórios extrajudiciais (Lei 11.441/2007). A Lei nº 9.514/97 que instituiu a alienação fiduciária em garantia facilitou a venda de imóveis e a sua retomada em caso de inadimplência através dos leilões extrajudiciais e ainda com o advento do Novo Código de Processo Civil determinando a obrigatoriedade de todos os fóruns contarem com os CEJUSC´s, dentre outros e todos com o fito de evitar a propositura judicial de demandas. E então, chegamos ao objeto deste trabalho: a possibilidade da usucapião realizada junto ao cartório extrajudicial.
A primeira concepção referiu-se apenas à modalidade constitucional da usucapião e veio através da Lei 11.977/2009, que nos artigos 59 e 60 previu a legitimação da posse e sua conversão em propriedade por usucapião reconhecida no tabelionato, desde que, fossem preenchidos os requisitos do artigo 183 da Constituição Federal. O artigo 1.071 do Código de Processo Civil (Lei 13.105/15) alterou a Lei de Registros Públicos (Lei 6015/73) para nela incluir o artigo 216-A e admitir a possibilidade de reconhecimento extrajudicial da usucapião, sem ressalvas quanto à sua modalidade[2].Posteriormente, a Lei 13.465/17 introduziu importantes alterações no artigo 216-A da Lei de Registros Públicos e, por fim, o Conselho Nacional de Justiça publicou o Provimento 65 em 14/12/2017.
Importante abrir um parêntese para acrescentar que a usucapião extrajudicial teve sua permissão de reconhecimento na esfera extrajudicial não apenas visando desafogar o Poder Judiciário, mas também para regularizar imóveis e conferir títulos de propriedade de modo célere e com maior abrangência. Tanto assim que mesmo que ocorra a rejeição do pedido extrajudicial a parte interessada poderá valer-se do Poder Judiciário e ajuizar a ação de usucapião (art. 216-A, § 9º, LRP), ou seja, sempre visando regularizar e outorgar título.
Feita essa observação, temos que a usucapião extrajudicial estabelece que a coisa seja hábil, a posse e o lapso temporal, os quais, exigidos em todas as espécies de usucapião. Já a boa-fé e o justo título são pedidos apenas na usucapião ordinária. Além disso, para o processamento da usucapião extrajudicial deverá haver o cumprimento de uma série de requisitos bem alinhados nos incisos I a IV do artigo 216-A da Lei 6015/73 e no Enunciado 65 do CNJ, cabendo ao interessado que é a parte legitimada através de advogado, nos termos do caput do referenciado artigo 216-A, apresentar requerimento que, no que couber deverá cumprir os requisitos da petição inicial (artigo 3º. Provimento 65 do CNJ) ao cartório de registro de imóveis competente (do local onde está o imóvel usucapiendo), instruído com:
a) ata notarial atestando o tempo de posse(artigo 4º do Provimento 65 do CNJ). E sobre posse é bom lembrar que a posse ad usucapionem é qualificada e deve ser uma posse justa, com ânimo de titular do direito real, que seja mansa e pacífica, e contínua. Ser justa, isto é, não decorrer de violência – física ou moral, ou esbulho –, clandestinidade – obtida às escondidas, de maneira oculta – ou precariedade – obtida com abuso de confiança ou de direito, já que a posse injusta não produz efeitos para fins de usucapião;
b) planta e memorial descritivo assinado por profissional legalmente habilitado pelo CREA ou pelo CAU, com a comprovação de anotação de responsabilidade técnica no conselho profissional devidamente quitada; E os requisitos da especialidade objetiva previstos nos artigos 176 e 225 da LRP deverão ser cumpridos quanto à descrição do imóvel;
c) Apresentação das certidões negativas dos distribuidores da comarca da situação do imóvel e do domicílio do requerente;
d) justo título ou outros documentos que demonstrem a origem da posse, continuidade, natureza e tempo, tais como o pagamento dos impostos e taxas que incidirem sobre o imóvel.
De se constar que é dispensado o consentimento expresso caso o requerente apresente o “justo título ou instrumento que demonstre a existência de relação jurídica com o titular registral, acompanhado de prova da quitação das obrigações e de certidão do distribuidor cível expedida até trinta dias antes do requerimento que demonstre a inexistência de ação judicial contra o requerente ou contra seus cessionários envolvendo o imóvel usucapiendo” (artigo 13 do Provimento 65 do CNJ).
Importante dizer, que a Lei 13.465/17, deu nova redação ao § 2º, do art. 216-A da LRP e promoveu a alteração da lógica de presunção dos confinantes devidamente intimados e que permaneçam inertes: o silêncio é tido como concordância, permitindo, dessa forma, a efetivação do procedimento na seara administrativa.
E em caso de não localização de confinante ou estando em local incerto e não sabido, poderá o registrador utilizar-se do mesmo edital mediante publicação, por duas vezes, em jornal local de grande circulação, pelo prazo de 15 dias cada um, para sua manifestação, também destacando que o silêncio implica em anuência.
Terceiros interessados terão ciência com a publicação de edital em jornal de grande circulação, onde houver (art. 216-A, § 4º, LRP), para apresentarem manifestação, também no prazo de 15 dias.
Ao Oficial de registro de imóveis caberá, ainda, dar ciência à União, ao Estado, ao Distrito Federal e ao Município, para que apresentem suas manifestações em 15 dias (art. 216-A, § 3º da LRP).
Com impugnação, o Oficial de registro de imóveis deverá remeter o pedido para o fórum do local onde está o imóvel e nele seguirá o procedimento comum.
Sem manifestações/impugnações e cessadas as diligências e constando a o cumprimento dos requisitos, o Oficial de registro de imóveis registrará a aquisição do imóvel cumprindo exatamente com as descrições trazidas. A decisão que concede a usucapião é de natureza declaratória (e forma originária de aquisição) e, portanto, não incidirá o ITBI, inclusive, assim previsto no artigo 24 do Provimento 65 do CNJ.
O Oficial de registro de imóveis terá, portanto, o dever de dar sequência e decidir o procedimento, autuando-o, analisando os documentos, efetuando as notificações, analisando impugnações, promovendo conciliação nas divergências e, por fim conceder ou não a usucapião.
Há informações de que o processamento da usucapião tem durado entre 90 e 120[3] dias nos cartórios extrajudiciais, o que traz significativas celeridade e efetividade, podendo arriscar dizer que os custos também diminuíram consideravelmente.
Alguns chegaram a questionar a constitucionalidade da desjudicialização da usucapião, todavia, creio que não haja qualquer inconstitucionalidade, pois a questão poderá ser levada ao Poder Judiciário (cáput, art.216-A LRP), cumprindo a previsão contida no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal. Como é praxe na área jurídica, as vozes contrárias e sem qualquer fundamento sempre bradam. Talvez com o desejo de vender cursos e livros do que, de fato, discutir o tema.
Uma questão que ainda gera polêmica é o fato não ser possível reconhecer a usucapião extrajudicial quando o imóvel não possuir registro e obrigatoriamente deverá ser proposta demanda judicial existindo movimentos para que isto venha a ser possível, considerando a Lei 13.465/2017 que visa a regularização fundiária e trouxe importantes modificações ao procedimento da usucapião extrajudicial como ferramentas para viabilizá-la, tal qual o fim da “presunção de discordância”.
Outra situação que ainda gera discussão é o fato de o imóvel usucapiendo possuir restrições e gravames quando não for aberta nova matrícula (art. 20, § 1º. Provimento 65 do CNJ), sendo relevante que o registrador informe que elas são ineficazes, vez que o provimento é silente nesse aspecto.
Logicamente, há riscos ao Oficial e vários outros questionamentos, mas penso que a usucapião extrajudicial tem muito mais pontos positivos que negativos e tem havido prudência na sua regulamentação. Estranho seria se uma norma desse porte e abrangência não causasse dúvidas.
Todavia, o que é importante mencionar para concluir essa breve resenha é que a usucapião extrajudicial vem sendo utilizada e todos, legislador, advogados, oficiais, CNJ e tribunais estaduais estão empenhados em dar cada vez mais efetividade à medida, maior simplificação e utilização dos cartórios extrajudiciais, inclusive, a MP 1085/21 (dispõe sobre o sistema eletrônico dos registros públicos), convertida em lei em 01/06/2022 – Lei 14.382/2022.
[1] O Poder Judiciário finalizou o ano de 2020 com 75,4 milhões de processos em tramitação (também chamados de processos pendentes na figura 54), aguardando algumasolução definitiva. Desses, 13 milhões, ou seja, 17,2%, estavam suspensos, sobrestadosou em arquivo provisório, aguardando alguma situação jurídica futura. Dessa forma,desconsiderados tais processos, tem-se que, em andamento, ao final do ano de 2020 existiam 62,4 milhões ações judiciais.
[2] São modalidades de usucapião: extraordinária, extraordinária reduzida, ordinária, ordinária reduzida, indígena, especial urbana, especial rural, coletiva e familiar. Cada uma tem seus próprios requisitos e contagem de tempo. Apostila, Demarest e Ad Notare, USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL | A Teoria na Prática, p. 13
[3] São modalidades de usucapião: extraordinária, extraordinária reduzida, ordinária, ordinária reduzida, indígena, especial urbana, especial rural, coletiva e familiar. Cada uma tem seus próprios requisitos e contagem de tempo. Apostila, Demarest e Ad Notare, USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL | A Teoria na Prática, p. 13
[4] Código de Processo Civil anotado, 2017, 2ª. edição, GZ Editora, artigo 1.071, p. 1.471
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